terça-feira, 26 de abril de 2016

Brasil de sabores, saberes e fazeres




Registrar, tombar, proteger por lei e preservar um bem material ou imaterial é falar diretamente à identidade cultural de um povo

Wolney Mororó e Isabelle Câmara

O acarajé da Bahia, o bolo de rolo de Pernambuco, o queijo de Minas, o jongo no Rio de Janeiro. O samba de roda no Recôncavo Baiano, o Círio de Nazaré em Belém do Pará, o modo de fazer renda em Sergipe, a capoeira no Brasil. Patrimônios imateriais do povo brasileiro, esses sabores, saberes e fazeres certificam a riqueza cultural do País.


O patrimônio cultural imaterial é composto pelas práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas, bem como os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são associados, que as comunidades, os grupos e indivíduos reconhecem como parte integrante de seu acervo cultural; aquilo que é transmitido de geração a geração, sendo constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história. Essa recriação e manutenção geram um sentimento de identidade e continuidade, contribuindo para a promoção do respeito à diversidade cultural e à criatividade humana.
A instauração do processo de registro de uma tradição cultural pode ser provocada pelo ministro da Cultura, por instituições vinculadas ao Ministério da Cultura, por secretarias de estado, de municípios e do Distrito Federal, bem como por sociedades ou associações civis. A instrução do processo é supervisionada pelo Iphan – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e deve conter descrição detalhada do bem a ser registrado, acompanhada da documentação que a comprove, com  informações sobre os elementos que lhe sejam culturalmente relevantes.
Atualmente, são 38 as atividades registradas e tombadas como Patrimônio Histórico Cultural, seja pela abrangência local, estadual, regional ou nacional. A roda de capoeira e o ofício de mestres capoeiristas, que existe em todo Brasil, o samba de roda do Recôncavo baiano, o frevo, em Pernambuco, e a pintura corporal arte kusiwa e arte gráfica dos índios Wajãpi, no Amapá, são alguns exemplos de patrimônios históricos nacionais, tombados pelo Iphan.
Apenas a roda de capoeira e o ofício de mestres capoeiristas são da categoria de abrangência nacional. Em razão disso, a Diretoria de Patrimônio Imaterial do Iphan coordenou um trabalho que resultou em um dossiê, com a finalidade de formar um inventário para registro e salvaguarda da capoeira, em todo território nacional, pois a essa manifestação tradicional foi registrada como forma de expressão e saberes de todo povo brasileiro. O dossiê revela, entre outras coisas, que “A capoeira é uma manifestação cultural que se caracteriza por sua multidimensionalidade – é, ao mesmo tempo, dança, luta e jogo. Em todas as práticas atuais de capoeira, permanecem coexistindo a orquestração musical, a dança, os golpes, o jogo, embora o enfoque dado se diferencie de acordo com a singularidade de cada vertente, mestre ou grupo”.
Presentes em todo o território nacional, a roda de capoeira e o ofício de mestre capoeirista foram registrados como forma de expressão e saberes de todo o povo brasileiro

Já o samba de roda, o frevo e a cidade de Ouro Preto, antiga Vila Rica, também foram reconhecidos pela Unesco, devido às suas relevâncias históricas em âmbito internacional. Hoje, são reconhecidos como Patrimônio Cultural da Humanidade, sendo que o samba de roda foi proclamado como Obra Prima do Patrimônio Oral e Imaterial da Humanidade pela UNESCO. A denominação designa uma mistura de música, dança, poesia e festa.
O samba se faz presente em todo Estado da Bahia, principalmente na região do Recôncavo Baiano, onde se concentrou a maior parte dos escravos trazidos da África, sobretudo para a mão de obra na produção de cana de açúcar. A região é reconhecida como o berço do samba brasileiro, onde, por volta de 1860, teriam surgido as primeiras manifestações do samba de roda. O ritmo se espalhou naquele período por várias regiões do Brasil, em especial nos Estados do Rio de Janeiro e de Pernambuco, onde surgiram, no século seguinte, em vertentes do original, compositores de samba da estirpe de Noel Rosa, Cartola, Paulinho da viola, Nelson Sargento e tantos outros.

O frevo tem origem, enquanto festa, no jogo de limas de cheiro, costume português trazido para o Brasil Colonial, tornando-se brincadeira do entrudo. É do bairro portuário do Recife, do final do século XVIII, o registro desses primeiros entrudos, em nossa sociedade. Integrantes das Companhias Carregadoras de Mercadorias, negros dirigidos por capatazes, se reuniam para os festejos dos Ternos de Reis. Em cortejo, conduziam um caixão de madeira e uma bandeira, ao som de marchas e músicas improvisadas, além das brincadeiras e dos fogos de artifícios.
O geógrafo Milton Santos é autor da tese de que o conhecimento e o saber se renovam do choque de culturas, sendo a produção de novos conhecimentos e técnicas produto direto da interposição de culturas diferenciadas - com o somatório daquilo que anteriormente existia. No seu entendimento, a globalização que se verificava em fins do século XX tenderia a uniformizar os grupos culturais, tendo por resultado o fim da produção cultural, enquanto gerador de novas técnicas e sua geração original. Disse, ainda, que esse fenômeno refletiria, também, na perda da identidade, inicialmente das coletividades, dos grupos sociais, podendo atingir o plano individual.
Nordeste de muitas cores - A exemplo da União, os estados da federação e os municípios também podem decretar o tombamento de um bem imaterial, com a finalidade de salvaguardar sua preservação, seja por iniciativa do Poder Executivo ou por votação, nas Casas Legislativas.
A pesquisadora e historiadora Carmem Lélis, da Secretaria de Cultura da Prefeitura da Cidade do Recife explica que nós temos, enquanto sociedade, uma relação com o Patrimônio Histórico Cultural, cujo sentido etimológico significa herança, legado. A pesquisadora prossegue afirmando que Patrimônio Histórico Cultural é tudo aquilo que é construído, repassado e que é deixado para um povo, como suas formas de expressão, de vida, de sociabilidade, de reconhecimento enquanto povo. “Já o Patrimônio Imaterial, abrangido pelo Patrimônio Histórico Cultural, diz respeito diretamente às culturas, não apenas a parte artística, mas o conjunto de valores sociais que são formados e desenvolvidos dentro dos pequenos e dos grandes grupos, ou seja, aquilo que você pode tratar no nível do simbólico, o que faz o Brasil ser o que é”, finaliza Carmem.
Pernambuco é o quarto estado da federação em número de registros do Patrimônio Cultural. Além do frevo, estão registrados também o cavalo marinho, o maracatu de baque solto e o maracatu de baque virado. Considerada a maior feira ao ar livre do mundo, a feira de Caruaru encontra-se registrada no Livro dos Lugares.
Segundo dados do Iphan, Alagoas, o segundo menor estado da Federação, é detentor de um rico patrimônio imaterial derivado das suas miscigenações étnicas: colonizadores europeus, indígenas e negros trazidos da África. Seu folclore reúne mais de 30 manifestações, tais como pastoril, guerreiro, taieira, baianas, reisados, marujada, presépio, cavalhada, bandos dos carnavalescos, cambindas, negras da costa, samba do matuto, caboclinhos, torés de índio e de xangô, as danças de São Gonçalo, o coco alagoano e rodas de adulto. As manifestações mais importantes em termos de canto e dança são a quadrilha, o coco de roda, a banda de pífanos, os violeiros e repentistas. O Estado também abriga diversos museus, entidades culturais e igrejas.
No Rio Grande do Norte tem a festa da padroeira de Sant’Ana de Caicó, que deixou de ser apenas uma celebração religiosa para se tornar um grande evento no calendário turístico local. Durante os festejos, que duram dez dias, acontecem missas, novenas, bênçãos, peregrinação, marcha, confissões individuais, batizado, carreata, recitação e procissão, dentro da programação religiosa.
E no Ceará também tem disso, sim: a Festa do Pau da Bandeira ocorre todos os anos, na cidade de Santo Antonio de Barbalha (CE), por ocasião dos festejos do santo padroeiro, que duram 13 dias.  A tradição da Festa do Pau da Bandeira teria começado em 1928, mas teve origem no incentivo do padre Ibiapina. Os fiéis escolhem uma grande árvore, cortam-na, e a carregam por 7 km, até a frente da Igreja Matriz de Barbalha, onde é hasteado com a bandeira de Santo Antônio, numa demonstração de força e fé.
As mãos das mulheres sergipanas que bordam e tecem a renda irlandesa também é patrimônio cultural naquele Estado. Mais de uma centena de mulheres se dedica a esse ofício, um dos mais belos e sofisticados produtos do artesanato brasileiro. São blusas, coletes, bolsas, passadeiras, panos de bandeja, porta copos, sapatinhos para recém-nascidos, colares, golas, vestidos, cintos, brincos etc. Esses saber e fazer ocorrem principalmente no município de Divina Pastora, localizado na antiga zona açucareira de Sergipe, a 39 km de Aracaju (SE). 

Outro registro significativo da região Nordeste é o teatro de bonecos popular, que cataloga o teatro de mamulengos, de Pernambuco; o babau, da Paraíba; o Casimiro Coco do Maranhão e do Ceará; e os teatros de bonecos João Redondo e calunga, do Rio Grande do Norte. O teatro de bonecos, de fantoches ou marionetes, como é a expressão teatral que caracteriza as encenações realizadas com esses elementos lúdicos, manobrados por pessoas.

 
Sabores do Brasil
E a culinária brasileira também tem seus bens. Minas Gerais, por exemplo, tem o queijo de minas, um sabor já incorporado pelo paladar nacional. Também patrimônio imaterial tombado pelo Iphan, o fazer artesanal e o comer queijo são parte do modo de ser mineiro. A produção de queijos de leite cru é uma atividade tradicional, enraizada no cotidiano de fazendas e sítios de Minas Gerais, e remete ao processo de ocupação desse território, durante os séculos XVII e XVIII. O fazer queijo contém, em si mesmo, um vasto repertório de conhecimentos tradicionais, que inclui as formas de comercialização e consumo desses queijos artesanais.

Agora, quer arrumar uma briga? Diga a um pernambucano que bolo de rolo é rocambole. Um dos símbolos de Pernambuco, a massa do bolo de rolo é feita com farinha de trigo, ovos, manteiga e açúcar. Já o recheio tradicional, com goiabada. Massa e recheio são enrolados em camadas finíssimas, produzindo um dos doces mais saborosos da terra dos altos coqueiros, que, indubitavelmente, foi reconhecido como patrimônio imaterial de Pernambuco, pela Lei 13.436/2008.
Outro sabor forte, mas apreciado nacionalmente, é o acarajé.

E o ofício das baianas de acarajé, tombado pelo Iphan em 2004, é um bem cultural de natureza imaterial, inscrito no Livro dos Saberes em 2005, consiste em uma prática tradicional de produção e venda, em tabuleiro, das chamadas comidas de baiana, feitas com azeite de dendê e ligadas ao culto dos orixás, amplamente disseminadas na cidade de Salvador, Bahia.



O tradicional bolo de rolo pernambucano

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