Desembargador federal e vice-presidente do TRF2
O passado não se apaga e não se esquece. Tal afirmação objetiva esclarecer o trajeto a ser percorrido na digressão que se fará sobre tão delicado tema, o qual, durante mais de três décadas, permaneceu no limbo dos debates, ostentando, no momento atual, quase que uma visão unilateral, prejudicando a verdadeira compreensão histórico-jurídica do fenômeno e inviabilizando, em última análise, a definitiva superação da altercação que, volta e meia, retorna à mídia nacional, ressuscitando as mais profundas paixões.
Não obstante o princípio basilar da segurança
jurídica como elemento fundamental da axiologia jurídica, começaram a surgir,
no cenário político brasileiro da atualidade, algumas vozes dissonantes em
relação à validade, até então incontestável, da Lei nº 6.683, de 28 de agosto
de 1979 - Lei de Anistia. Assim, o artigo propõe-se a analisar e
discutir a Lei de Anistia, notadamente a sua dimensão jurídica (e consequências
ínsitas). A discussão jurídica a respeito da constitucionalidade da Lei de Anistia,
notadamente da previsão contida no seu art. 1º, § 1º, não é nova. O assunto volta
e meia é retomado, mesmo diante da existência de uma decisão proferida pelo
Supremo Tribunal Federal. Em 28 e 29/04/2010, o Plenário do STF debateu sobre o
pedido formulado pelo Conselho Federal da OAB na ADPF nº 153/DF, a qual, em
síntese, objetivava que a Corte Suprema declarasse o não recebimento, pela
Constituição de 1988, da regra contida no art. 1º, § 1º, da Lei nº 6.683/79. Pretendia
a OAB que a aludida norma fosse interpretada de modo a não abarcar os crimes
comuns praticados pelos agentes da repressão contra opositores políticos,
concluindo, assim, não terem eles sido anistiados. O STF, na ocasião, tendo
como relator o ministro Eros Grau, entendeu pela improcedência (sete votos a
dois) da ADPF.
Nada
obstante o que restou firmado na ADPF nº 153, o debate sobre a
constitucionalidade da Lei de Anistia é incrivelmente retomado, - ao arrepio do
próprio efeito vinculante
expressamente previsto na hipótese e, igualmente, em inconteste afronta aos
ditames do Estado de Direito, que preconiza a indiscutibilidade das decisões
terminativas proferidas pela Suprema Corte -, sendo certo afirmar que todas as
teses apresentadas no momento atual já foram amplamente discutidas, conforme será
demonstrado.
Como exemplo dessa iniciativa de se retomar o debate em torno da Lei de
Anistia, cumpre mencionar o Processo
nº 0017766-09.2014.4.02.5101, que tramitava na 6ª Vara Federal Criminal do Rio
de Janeiro, relativo ao Caso Riocentro (1981). A partir de denúncia formulada
pelo MPF, o juízo federal, analisando questão inerente à prescrição, asseverou
a sua não ocorrência, fundando-se em duas premissas. Na primeira, acolheu a
tese esboçada pelo MPF, e já rejeitada pelo STF quando da ADPF, afirmando que:
"o atentado [...] descrito fazia parte de uma série de outros quarenta
atentados a bomba semelhantes ocorridos no período de um ano e meio, direcionados
à população civil, com o objetivo de retardar a reabertura política que naquele
momento já se desenhava" (JUSTIÇA FEDERAL DO RIO DE JANEIRO, 2014). Uma
vez fincada a primeira premissa, afirmou que a imprescritibilidade dos crimes
contra a humanidade seria um princípio geral de Direito Internacional aceito
pelos Estados, e devidamente incorporado aos costumes internacionais. Em síntese, a decisão que recebeu a
denúncia enquadrou os fatos ocorridos em 1981 como crimes contra a humanidade,
tendo em vista que as condutas perpetradas fariam parte, em tese, de um ataque
sistemático de agentes do Estado brasileiro contra a população civil. E
concluiu, por fim, que os fatos narrados, enquanto crimes contra a humanidade,
seriam imprescritíveis.
O desembargador federal Ivan Athié,
relator, consignou que a decisão de recebimento da denúncia não poderia ter se
baseado em normas de Direito Internacional a fim de sustentar a existência de
crimes contra a humanidade e, por conseguinte, a imprescritibilidade dos fatos
praticados.
O desembargador federal Abel Gomes,
divergindo do relator, manifestou-se pela impossibilidade de se aplicar, ao
episódio em tela, a Lei de Anistia, tendo em vista que a Lei nº 6.683/79 faz
expressa referência ao período compreendido entre 02/09/1961 e 15/08/1979,
sendo que o Caso Riocentro, como sabido, data de 30/04/1981. Em seguida, passou
a focar a questão inerente à existência de prescrição. Para tanto, analisou a
possibilidade de se valer de princípios gerais de Direito Internacional e/ou de
costumes jurídicos da mesma seara em sede de norma penal incriminadora. Nesse
aspecto, registrou o magistrado não ser possível "lançar mão com tanta
facilidade de costumes e princípios" (TRF/2ª REGIÃO, 2014). Ato contínuo, discordou
da natureza de crimes contra a humanidade atribuída pelo MPF aos delitos em tese
cometidos no Caso Riocentro, afirmando que "a narrativa dos fatos e os
elementos que os revestem [...] afastam o delineamento necessário que
transforma tais fatos em crimes contra a humanidade" (TRF/2ª REGIÃO, 2014).
Concluindo sobre a definição de crime contra a humanidade, pontuou que o fato
em questão não pode ser incluído na definição de crimes contra a humanidade, "porque
não faziam parte de uma ação dos agentes legitimamente operando em nome de uma
política de Estado do momento" (TRF/2ª REGIÃO, 2014). Prosseguindo, o desembargador
federal Abel Gomes anotou que os fatos narrados pelo MPF denotam a existência
de uma organização criminosa, recordando-se, então, do disposto no art. 5º,
XLIV, da CF, segundo o qual, "constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos
armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado
Democrático". No entanto, conforme destacou, o referido dispositivo constitucional passou
a viger a partir de 05/10/1988, sendo que os fatos em tela são de 30/04/1981.
Logo, a regra do art. 5º, XLIV, da CF, dotada de maior severidade, não poderia
retroagir por força do art. 5º, XL, da mesma Lei Maior. Assim, entendeu que
todos os delitos imputados pelo MPF foram afetados pela prescrição.
Por sua vez, o desembargador federal Paulo
Espirito Santo, divergindo dos votos proferidos pelo relator e pelo desembargador
federal Abel Gomes, votou, em síntese, no sentido de afastar a incidência da
anistia e da prescrição ao Caso Riocentro.
Como resultado do julgamento, a 1ª
Turma Especializada do TRF/2ª Região, por maioria, concedeu a ordem, reconhecendo
a inexistência de crime contra a humanidade e a incidência da prescrição da
pretensão punitiva.
Conceitualmente, conforme leciona RENÉ ARIEL DOTTI, anistia,
palavra que deriva do grego amnistia,
é o ato pelo qual o Estado renuncia ao poder-dever de punir o autor de um
delito, o que se dá a partir de razões de necessidade ou conveniência política,
sendo sua concessão atribuição exclusiva do Congresso Nacional (art. 48, VIII,
da CF). Trata-se de causa extintiva da punibilidade (art. 107, II, 1ª figura,
do CP), sendo destinada a "fazer
desaparecer o caráter reprovável do fato e a perdoar os seus autores" (DOTTI, 2005, p. 674).
PAULO CÉSAR BUSATO recorda que a anistia dirige-se a tipos
determinados, operando, assim, um duplo efeito, tanto para os casos passados
que foram apurados, quanto para os que não o foram, objetivando alcançar a
"pacificação e a cessação de hostilidades entre grupos de pessoas, como
aconteceu com a superação do golpe militar de 1964 no Brasil" (BUSATO, 2013,
p. 610).
Nesse diapasão analítico, questão interessante, e que também está
sendo ventilada na quadra atual, refere-se à possibilidade de haver revogação
da Lei de Anistia e, por conseguinte, tornar viável a persecutio criminis. No caso, ainda que haja revogação da Lei nº
6.683/79, a regra revogadora ostentará conteúdo gravoso, não podendo retroagir (art.
5º, XL, da CF). No mesmo sentido, a posição de ANDRÉ ESTEFAM (2012, p. 497). Da
mesma forma, segundo a lição de FERNANDO CAPEZ (2012, p. 599), a anistia, uma
vez concedida, não pode ser revogada, posto que a lei revogadora seria
prejudicial aos anistiados. Igualmente, a Advocacia-Geral da União, quando de
sua manifestação no bojo da ADPF nº 153, aduziu que o desfazimento da situação
consumada por força do exaurimento dos efeitos da Lei de Anistia
"colidiria com o princípio da irretroatividade da lei penal" (STF,
2010).
Cabe registrar, de início, que não existe, no Direito Interno,
qualquer definição apta a nortear o que vem a ser crime contra a humanidade, o
que se comprova a partir de uma exegese histórica. Aliás, reportando-se ao
método histórico, MARIA HELENA DINIZ
ressalta que este refere-se ao histórico do processo legislativo, desde o
projeto de lei, sua justificativa ou exposição de motivos, emendas, aprovação e
promulgação, "ou às circunstâncias fáticas que a precederam e que lhe
deram origem, às causas ou necessidades que induziram o órgão a elaborá-la, ou
seja, às condições culturais ou psicológicas sob as quais o preceito normativo
surgiu (occasio legis)" (DINIZ, 2001, p. 426). Tal concepção também
é percebida por SÍLVIO VENOSA, segundo o qual "sob o prisma histórico, o exegeta deve, pois, analisar os
trabalhos preparatórios da lei, os anteprojetos e projetos, as emendas, as
discussões parlamentares, a fim de ter um quadro claro das condições nas quais
a lei foi editada" (VENOSA, 2006, p. 176-177).
Tendo em vista que o Estatuto de Roma (art. 7º) faz referência à
expressão crime contra a humanidade,
o Poder Executivo Federal, através da Mensagem nº 700/2008, e objetivando dar
cumprimento ao compromisso assumido pelo Estado brasileiro junto à comunidade
internacional, encaminhou ao Parlamento Federal projeto de lei cuja ementa dispõe
sobre o crime de genocídio, define os crimes contra a humanidade, os crimes de guerra
e os crimes contra a administração da justiça do Tribunal Penal Internacional,
institui normas processuais específicas, dispõe sobre a cooperação com o
Tribunal Penal Internacional, e dá outras providências.
O artigo I da Convenção sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de
Guerra e dos Crimes de Lesa-Humanidade, de 1968, considera imprescritíveis, independentemente da data
em que tenham sido cometidos, os crimes de guerra, como tal definidos no
Estatuto do Tribunal Militar Internacional de Nuremberg, de 1945, e confirmados
pelas Resoluções nº 3, de 1946, e nº 95, de 1946, da Assembleia Geral das
Nações Unidas, nomeadamente as infrações graves enumeradas na Convenção de
Genebra, de 1949, para a proteção às vítimas da guerra. Da mesma forma, são considerados
imprescritíveis os crimes contra a humanidade, sejam cometidos em tempo de
guerra ou de paz, como tal definidos no Estatuto do Tribunal Militar
Internacional de Nuremberg, bem como nas referidas resoluções, assim como a
expulsão por um ataque armado ou ocupação e os atos desumanos resultantes da
política de apartheid; e, ainda, o
crime de genocídio, como tal definido na Convenção de 1948 para a prevenção e
repressão do delito de genocídio, mesmo que estes atos não constituam violação
do Direito Interno do país onde foram cometidos. C
umpre registrar,
desde logo, que pesadas críticas foram lançadas em relação à Convenção sobre a
Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes de Lesa-Humanidade, razão
pela qual não foi até hoje ratificada por inúmeros Estados, dentre os quais o Brasil,
notadamente por prever a incidência retroativa sobre fatos delituosos ocorridos
antes de sua entrada em vigor (artigo I), em nítida afronta ao princípio da
irretroatividade da lei penal mais severa.
Ainda no âmbito das Nações Unidas, já nos idos de 1974, elaborou-se a
Convenção Europeia sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos
Crimes contra a Humanidade, mas sem a referida previsão de incidência
retroativa, instrumento este que foi ratificado por alguns poucos países, dado
que torna evidente a completa ausência de consenso sobre tão delicada questão
(imprescritibilidade).
Vinte anos depois,
surgiu a Convenção Interamericana sobre os Desaparecimentos Forçados, de 1994, aprovada, no Brasil, pelo Decreto Legislativo
nº 127/2011, mas ainda não promulgada por decreto do Executivo, cujo artigo VII considera o desaparecimento forçado
de pessoas como crime contra a humanidade e, por isso, imprescritível,
estabelecendo, no entanto, uma ressalva:
Por
fim, o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, de 1998, igualmente
versou sobre a questão da imprescritibilidade de determinados delitos
internacionais, conforme prevê o artigo 29.
Feitas as considerações acima, cabe
repisar um importante dado, constante da própria sentença da Corte
Interamericana: o Estado brasileiro não ratificou a Convenção sobre a Imprescritibilidade dos
Crimes de Guerra e dos Crimes de Lesa-Humanidade, omissão que, segundo a sentença,
seria decorrente de pressão política de militares. Tal afirmação desconsidera a própria história e tudo o
que se seguiu ao Regime Militar, sobretudo a Carta de 1988, verdadeiro
documento comprobatório de um novo Estado, absolutamente comprometido com a
edificação de um sólido sistema internacional de proteção dos direitos humanos,
conforme demonstram as disposições contidas nos arts. 1º, III; 4º, II, e 5º, §
2º, todos da CF. Por conseguinte, tal falaciosa "pressão militar"
efetivamente não existe. Aliás, o Senado Federal, nas informações prestadas
quando da ADPF nº 153, pugnou pela inépcia da exordial, uma vez que a Lei de
Anistia teria exaurido seus efeitos no mesmo instante em que ingressou no
ordenamento jurídico, há mais de trinta anos, na vigência da Constituição
anterior (STF, 2010). Da mesma, a Advocacia-Geral da União, livre de qualquer suposta
"pressão", assentou que "a abrangência conferida, até então, à
Lei n. 6.683/79, decorre, inexoravelmente, do contexto em que fora promulgada,
sendo certo que não estabeleceu esse diploma legal qualquer discriminação, para
concessão do benefício da anistia, entre opositores e aqueles vinculados ao
regime militar" (STF, 2010). Com efeito, é de se admirar a afirmação
segundo o qual a ausência de ratificação da referida Convenção seria "fruto de pressão política daquele
grupo de militares", posto que os militares, desde o término do governo do
presidente João Figueiredo (15/03/1979 a 15/03/1985), não ostentam mais o poder
político de outrora.
Assim, tendo em vista a não ratificação da
aludida convenção pelo Estado brasileiro, imperioso concluir pela impossibilidade de se acolher a noção de
imprescritibilidade estabelecida na dita norma internacional.
Ao pontuar que nem
mesmo o Estatuto de Roma (incorporado ao Direito Interno) supera o que
preconiza a Carta da República sobre o tema prescritibilidade,
ANDRÉ ESTEFAM demonstra não aceitar que uma convenção que sequer foi ratificada
possa gerar compromissos ao Estado brasileiro.
Como visto, a Corte
Interamericana invocou a noção de costume jurídico internacional para afirmar a
responsabilidade do Estado brasileiro. O costume jurídico, segundo pacífica
doutrina (REZEK, 2002, p. 113), figura como fonte do Direito Internacional, assentando-se sobre dois elementos indispensáveis
à sua formação e consequente aplicabilidade: o material e o psicológico. O
primeiro consiste na prática constante e reiterada de uma certa conduta. No
caso do Direito Internacional, na repetição de determinado procedimento por
parte dos Estados. O elemento psicológico (opinio
juris) guarda relação com a convicção de que tal proceder é necessário. Somente
pela conjugação dos dois elementos a norma costumeira é formada.
Tendo em vista que o Brasil não ratificou a
Convenção sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes de
Lesa-Humanidade, e transportando a ideia inerente à norma costumeira para o tema
em discussão, duas questões surgem e devem ser debatidas, posto que
fundamentais para o deslinde da vexata
quaestio: a) de início, é preciso
considerar se o cenário internacional atual permite mesmo inferir que os
Estados concebem a imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade enquanto
verdadeiro costume jurídico; b)
ultrapassada tal análise, há que se discutir se o fato de o Direito Constitucional
brasileiro restringir os casos de imprescritibilidade ao delito de racismo
(art. 5º, XLII, da CF) e à ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem
constitucional e o Estado Democrático (art. 5º, XLIV, da CF) funciona como óbice à adoção, por parte do
Brasil, de um suposto costume jurídico internacional.
Quanto à primeira
questão, cabe mencionar que a doutrina internacionalista diverge a respeito da
efetiva existência, na cena internacional, de um tal costume. RATNER e ABRAMS (1997,
p. 26) aludem que o fato de ter havido pouca adesão à Convenção sobre a
Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes contra a Humanidade, bem
como à Convenção Europeia sobre os Crimes contra a Humanidade e os Crimes de
Guerra, militaria em prol da tese que pugna pela inconsistência de uma norma
consuetudinária.
Embora a Corte
Interamericana em nenhum momento tenha se embasado no Estatuto de Roma do Tribunal
Penal Internacional para forjar a noção de imprescritibilidade inerente aos
crimes contra a humanidade, interessa, para o presente estudo, verificar como tal
documento internacional trata do tema, obtendo-se um panorama mais recente e abrangente
sobre a questão, possibilitando o emprego da denominada interpretação
sistemática. Pois bem. O assunto, no Estatuto de Roma, é abordado apenas numa
regra, qual seja, o artigo 29, segundo a qual os crimes da competência do Tribunal Penal Internacional não prescrevem.
Com efeito, é possível argumentar que a
edição do Estatuto de Roma configura um dado apto a demonstrar a inexistência
de uma norma costumeira relativa à imprescritibilidade de tais delitos na cena
internacional. Pode-se afirmar, portanto, que o artigo 29 surgiu justamente
para estancar a problemática causada pela Convenção de 1968, a qual acolhia o odioso
princípio da retroatividade da lei penal mais severa. Nesse sentido, afirma VELLOSO
que a análise dos trabalhos preparatórios relativos ao Estatuto de Roma permite
inferir a existência de dúvida quanto à afirmação segundo a qual o artigo 29 do
Tribunal Penal Internacional estaria a codificar uma norma consuetudinária
internacional já existente. Da mesma forma, assevera a pesquisadora que "embora
os Estados-partes no Estatuto de Roma tenham chegado a um acordo sobre a regra
convencional da imprescritibilidade, à época da negociação o debate, iniciado
trinta anos antes, não havia sido concluído. A natureza costumeira deste
princípio não se havia consolidado, mas encontrava-se ainda em processo de afirmação"
(2008, p. 20).
Nada obstante, ainda
que a Corte Interamericana tenha proclamado a existência de um tal costume
jurídico, não há como adotá-lo, no plano interno, de modo a viabilizar a punição
de crimes cobertos pela Lei de Anistia. A propósito, ANDRÉ ESTEFAM assevera que
não "pode o direito consuetudinário [...] embasar a punição criminal de um
ato, ou mesmo o agravamento das consequências penais de uma infração penal
definida em lei" (ESTEFAM, 2012, p. 125). Assim, voltando à segunda
pergunta formulada alhures, resta evidente a impossibilidade de se invocar o costume jurídico internacional para
alicerçar a pretensão punitiva do Estado, sobretudo diante do princípio da
legalidade.
Segundo leciona MIRABETE, "não se pode falar em
criação ou revogação de crimes pelo costume, dado o princípio da
legalidade" (2011, p. 29). Na mesma linha de raciocínio, JUAREZ CIRINO
assevera que o "princípio da
legalidade proíbe o costume como
fundamento de criminalização e de punição de condutas, porque exige lex scripta para os tipos legais e as
sanções penais" (CIRINO, 2006, p. 22).
Assim, ao se
basear num suposto costume jurídico internacional, a sentença prolatada pela Corte
fez letra morta do princípio da
legalidade, considerado por todos os penalistas modernos como o postulado mais
sagrado do Direito Penal, verdadeiro dogma cuja observância irrestrita é fundamental
para o legítimo aviamento do jus puniendi,
decisão que se apresenta incoerente, já que tal proceder representa um
retrocesso e nega um dos mais sólidos avanços democráticos obtidos ao longo dos
séculos em matéria de Direito Penal (ESTEFAM, 2012, p. 124). Por força do aludido princípio, previsto não
somente no Direito brasileiro (art. 5º, XXXIX, da CF; art. 1º do CP), mas com
igual previsão no artigo 9 do Pacto de San José da Costa Rica (promulgado
pelo Decreto nº 678/92), é impossível
valer-se de um conceito consagrado pelo Direito Internacional, e não acolhido
pelo Direito Interno através da sistemática vigente para a incorporação de
tratados, a fim de se descortinar o jus
puniendi.
A
sentença da Corte Interamericana desenvolve-se, então, a partir de um
raciocínio incongruente. A Corte Interamericana afirma, por um lado, que "a jurisprudência, o costume e a
doutrina internacionais consagram que nenhuma lei ou norma de direito interno,
tais como as disposições acerca da anistia, as normas de prescrição e outras
excludentes de punibilidade, deve impedir que um Estado cumpra a sua obrigação
inalienável de punir os crimes de lesa-humanidade" (CORTE INTERAMERICANA
DE DIREITOS HUMANOS, 2010). Por outro, decide que
o Estado brasileiro deve fazer ouvidos moucos para o artigo 9 do Pacto
de San José da Costa Rica, que consagra o mais
fundamental de todos os princípios do Direito Penal, qual seja, o da legalidade.
Com efeito, por conta
do dogma da legalidade, não se admite o emprego do Direito Consuetudinário como
forma de ampliar a esfera punitiva estatal, justamente o que a sentença da
Corte Interamericana, de certo modo, pretende fazer.
Analisada sob o prisma
jurídico, não obstante todas as considerações identificadas e apontadas nas
principais teses jurídicas abordadas quando da análise da ADPF nº 153, do Caso
Riocentro, do Caso Rubens Paiva e da sentença proferida pela Corte
Interamericana no Caso Julia Lund Gomes e Outros, a Lei de Anistia permanece válida, inclusive por expresso reconhecimento
pela Suprema Corte brasileira, razão pela qual o jus puniendi, nas hipóteses acima, esbarra em óbices constitucionais
incontornáveis, que podem ser resumidos através dos seguintes enunciados:
a) Embora presente no Direito Internacional,
inexiste, no Direito Interno, qualquer definição de crime contra a humanidade.
b) A impossibilidade de punição dos autores
de crimes perpetrados nas ocasiões referidas decorre de marcos limitadores do
poder punitivo estatal, dentre os quais se pode citar o fenômeno da prescrição, cuja essência deve ser
interpretada de modo a se evitar a ampliação das hipóteses que conduzem a casos
de imprescritibilidade, justamente por ser aquela uma causa que extingue,
elimina e afasta a sanção penal do Estado.
c) O tema prescrição, justamente por interferir diretamente no jus puniendi do Estado, não pode ser
contornado sob o argumento de que o costume jurídico internacional considera a tortura e o terrorismo, quando cometidos por agentes do Estado como forma de
perseguição política, como crimes contra a humanidade.
d) Invocar um costume jurídico internacional,
cuja existência é absolutamente controvertida, revela um descompromisso com o
princípio da legalidade penal.
e) Nem mesmo a Convenção sobre a
Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes de Lesa-Humanidade pode
ser invocada como argumento para conferir tal imprescritibilidade aos crimes
então praticados.
f) Mostra-se extremamente perigoso alargar,
sem lastro jurídico e por meio de simples falácias, o campo de incidência do
Direito Penal. Nesse sentido, cumpre lembrar o notável CLAUS ROXIN (2006, p.
138), para quem um Estado de Direito deve proteger o indivíduo não apenas
através do Direito Penal, mas também do próprio Direito Penal.
Registre-se, ainda, que
tal contestação quanto à Lei de Anistia reflete, em última análise, não uma
discussão meritória e jurídica acerca de seus comandos normativos, mas, sim,
uma grave e indiscutível negação à própria democracia, considerando o flagrante
desrespeito à autoridade de uma decisão proferida pelo Supremo Tribunal
Federal, órgão de cúpula do Judiciário brasileiro, moderno e poderoso
instrumento de estabilização política, o que, a toda evidência, não se coaduna
com o espírito democrático enraizado na Constituição de 1988.
Nenhum comentário:
Postar um comentário